segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Tem uma coisa que eu chamo de “efeito porta de banheiro”:
Quando uma pessoa está do lado de fora do banheiro, na fila, esperando apertada para entrar, ela torce para que a outra pessoa, de dentro, saia logo e para que a fila ande depressa. Ela fica puta se alguém demora demais lá dentro, acha falta de consideração com os de fora. Quando, finalmente, chega sua vez e a pessoa entra no tão sonhado banheiro, parece que o fechar da porta exerce um efeito mágico na perspectiva temporal e na consciência de alguns. Esquecendo-se da enorme fila do lado de fora, da situação desprivilegiada – pra não dizer “de merda” - em que ela mesma estava há segundos atrás, a pessoa toma todo o tempo do mundo: faz xixi, cocô, xixi de novo, se olha no espelho, passa um batonzinho, ajeita o cabelo, escova os dentes, passa fio-dental para ficar em dia com o dentista, faz mais um xixizinho, que ninguém é de ferro... E a fila? Que fila? Para que ter compaixão às outras pessoas quase explodindo do lado de fora da porta fechada do banheiro se eu já estou aqui dentro? Se já não estou mais em uma situação (tão) ruim? Para que empatia com o sofrimento dos outros se não sou eu quem está sofrendo no momento?
Assim, por exemplo, a mulher branca casada com o homem negro se esquece de que há alguns anos isso seria impossível, se esquece de que até hoje alguns se acham no direito de “ser contra” seu casamento, “discordar” de sua forma de amor, se esquece de que muitos pais racistas já “não quiseram que suas crianças presenciassem essa cena”, e, agora, já do lado de dentro da porta do banheiro, passa ela mesma a reproduzir todo o preconceito por ela sofrido contra os que estão do lado de fora da porta do banheiro, dos que estão apertados na fila. A mulher branca casada com um homem negro passa a se achar no direito de “ser contra” os LGTB’s, por exemplo. Passa a se achar no direito de “discordar” dos direitos das PESSOAS homossexuais. Passa a “não querer que suas crianças vejam” um casal de mulheres ou homens sendo um casal e agindo como tal.
E, assim, ricos odeiam pobres, que odeiam negros, que odeiam nordestinos, que odeiam ciganos, que odeiam judeus, que odeiam deficientes, que odeiam evangélicos, que odeiam homossexuais, que etc, etc, etc. E todos os que não pediram para entrar nessa quadrilha do ódio, e nada poética, acabamos dançando também - às vezes a tiros de bala de revólver.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014


    De repente, entre estudos camonianos, uma voz se aproxima, "eu vou lá ver a Mariana!", e entram no quarto os olhos mais azuis e mais tristes que me viram crescer. Nazaré, uma senhorinha de seus sessenta e alguns anos, que trabalha na casa da minha avó. 
    "Vem cá, Naza! Senta comigo pra gente estudar", brinco.
    "Quem dera estudar, minha filha."
    "... Então vem cá que eu leio pra você."
   Ela senta na cama em frente à em que estou e, não sei bem como, a partir da nossa conversa, começa a contar de seus filhos, de sua casa, de seu primeiro marido, que "não valia um centavo", e de Tomazinho.
    "O José Tomás foi meu segundo marido, mas eu só chamava de Tomazinho. Com ele, sim, eu fui feliz. Ficamos casados treze anos. Os vizinhos falavam que não tinha casal no mundo como a Dona Nazaré e o seu Tomás. Uma vez, ele estava aqui na praça Nossa Senhora da Paz me esperando, conversando com uma gringa no banco. Eu fui chegando perto e ouvindo um tal de 'lóvi, lóvi'. 'Olha aí meu docinho de coco!', ele disse quando me viu. Aí a gringa levantou e veio me dizer 'A senhora é a Nazaré? Pois saiba que se seu nome fosse de sorvete, já teria derretido na boca do seu marido'".
    Quatro olhos claros se enchem d'água.
    "O Tomazinho era tão bom pra mim, Mariana. Se ele ainda estivesse vivo, a gente estava em João Pessoa. Ele brigava comigo que eu já tinha trabalhado muito, que a gente ia comprar uma casinha e um carro e viver passeando. A gente só estava esperando ele se aposentar.
    "Ele não me deu trabalho nenhum, foi ao banco, arrumou tudo, me deixou com a minha casinha. Em duas semanas, o câncer acabou com ele. Tão forte, ficou magrinho magrinho, nem parecia aquele meu Tomazinho."
    A essa altura, já estou abraçada com ela, beijando seu cabelo branco de que sou fã e tentando, talvez por concorrência desleal com as dela, segurar minhas lágrimas. 
    Depois de mais alguma conversa, desconcertada de minha parte, e de a Nazaré me alertar sobre como é ruim ser velho e sobre como é importante sermos pessoas bacanas, porque "o mundo dá tantas voltas", ela me diz para eu estudar, que serei "uma grande menina, maior do que já é!", vai embora do quarto e me deixa completamente impossibilitada de me importar com quaisquer excursos que não sejam os dela, poeta da minha tarde, e de tantas outras tardes de bolos e lições inesperadas.
    Nazaré, Nazaré, há tantos jeitos de ser grande muito mais importantes do que lendo meia dúzia ou zilhões, que sejam, de textos acadêmicos. Espero que um dia eu seja grande assim como você.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Eu não sou homossexual. Eu não sou bissexual. Eu não sou mulher. Eu não sou moradora da Zona Sul. Eu não sou carioca. Eu não sou brasileira. Eu não sou estudante de Letras. Eu não sou estudante da UFRJ. Eu não sou branca. Eu não sou sem-religião. Eu não sou ex-católica. Eu não sou ex-evangélica. Eu não sou ex-gorda. Eu não sou alta. Eu não sou cachaceira. Eu não sou neta de paraense. Eu não sou neta de capixaba. Eu não sou filha de mãe morta. Eu não sou a filha do meio.
Eu não sou nada disso. Eu sou tudo isso e mais inumeráveis coisas. E eu não vejo a hora da minha sexualidade virar apenas um detalhe.


quinta-feira, 26 de junho de 2014

Para não rimar céu com papel (poema resposta)

Pois, se for caso de comprar,
eu compro.
Pois, se entregarem antes das dez,
acordo.

Mas eu prefiro assim chegado
com lua na mesa e cerveja no céu.
Coração disfarçado de flores
de papel e de canudo.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2013


    Como um catador de lixo às avessas, vou buscando latas cheias de cerveja. “Hábito” quase tão lucrativo quanto o deles, dada a miséria paga. Menos saudável, entretanto. Bebo mais pra escrever melhor, ou pra não saber mais que estou escrevendo tão mal. E tocam (e tocam, e tocam, e tocam!) jazz. Não sei nem o que nem de quem, só sei que é jazz porque diz o cartaz: FESTIVAL DE JAZZ.

    (Porra! Me dou uma bronca pelo que ia escrever.)

    Essa cultura de “foi com quem?”. Parece que a gente tá sempre precisando de companhia, e, quando não precisamos, galera logo faz que sim: foi com quem? Fui comigo, porra.

    Tô é muito desconfiada desse jazz. Não entendo nada de jazz (de nada), mas isso não é jazz.

(...)

    Tem uma mãe me olhando e me olhando. Segunda mãe da vida me olhando e me olhando, e não to falando da minha, que só teve tempo de olhar rápido. Parou, foi embora.

(...)

segunda-feira, 26 de novembro de 2012



    Meio de novembro. Uma cobertura já enfeitada de natal pisca verde vermelho amarelo. A luz do poste escorre pela chuva dentro de mim junto com o chope. Quatro e setenta, o chope. Eu, que só tenho duas notas de dois para um possível assalto, fico devendo setenta ao garçom. O assaltante que me desculpe, pago fiado. Fica justo.
    Uma nuca atraente.
    Quem me expulsou de casa é a vontade de engolir o mundo. De ser engolida viva, digerida. Ou de causar indigestão.
    A mão inclina o copo que entorna na boca o chope gelado. Primeiro, espuma. Em seguida, o líquido dourado. Lábios, dentes, língua céu da boca. Vai amortecendo, acolchoando, preparando a cama, travesseiro, lençol, edredom. Escorre, depois, pela garganta e dá conta do resto do corpo. Pijama de moletom.
    Há quem prefira um leitinho quente.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012


Vende-se coração.

Descrição: péssimo estado de conservação. Partido recentemente por uma bela dama, estando, pois, bastante remendado e batendo com certo desprazer, além de apresentar histórico familiar de morte prematura por infarto, uma coleção de pontes de safena e outros tantos acidentes cardiovasculares.

Tamanho: aproximadamente 12 cm de comprimento por 9 cm de largura, oscilando no compasso sístole-diástole e comprimindo-se até o tamanho de um caroço de uva em situações de tensão ou sofrimento.

Ao comprador: se tratado com hábitos saudáveis, como uma alimentação balanceada e exercícios físicos regulares, evitando, assim, sobrecarregar o órgão em questão devido a entupimentos de veias, artérias ou quaisquer outros destes canais, e com uma pequena dose diária de carinho e respeito, estima-se que dure ainda mais algumas décadas. Embora, talvez, capengando um pouco.

Preço: uma pechincha.