quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

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   Então a lágrima mancha o sorriso. Suga sua energia para dela se alimentar. Rouba-lhe a vida como um parasita, toma corpo e se multiplica. E, pelas lágrimas, escorre a tristeza. O sofrimento derrete-se no fundo olhos e escapa modestamente da matéria. Porém, já livre, não evapora levando consigo o passado, mas retorna ao corpo para dele se apossar. Infiltra-se pelos poros, fundindo-se ao sangue. É, agora, parte da matéria, e por ela circula livremente. Vira essência, a vicia.
   E o amargo beijo, outrora tão doce, perdura inabalável na eternidade do pensamento.

domingo, 21 de novembro de 2010

Título omitido.


   Querido amigo
   - sim, amigo; pois o conselho que lhe darei só poderia vir de alguém que lhe quer muito bem, ou que, no mínimo, deseja impedir que você passe por infortúnios -, recomendaria que anotasse o que lhe digo com muito cuidado, quem sabe até tatuando este lembrete em lugar bem evidente de seu corpo para que não corra o risco de perdê-lo. Porém, se preferir não atribuir tamanha importância a isto – o que, o advirto, será um erro -, guarde, pelo menos, muito bem guardado, em suas memórias mais recentes, sempre as renovando, evitando, assim, esquecer.
   O que lhe trago aqui não provém de meras divagações, mas de minha própria e infeliz experiência de vida. E o que procuro é mantê-lo a salvo do patético. Jamais, amigo, em tempo algum, espere estar apertado para então fazer xixi.
   Se, ao ler minhas palavras, lhe brotou um meio sorriso no rosto, ou se acaso lhe veio à tona um pouco caso, peço com angústia que reconsidere e volte a lê-las. O que escrevi não é engraçado e tampouco merecedor de desprezo. Asseguro-lhe que uma bexiga cheia tem o poder de arruinar vidas inteiras em poucos minutos, ou de, nos casos em que o destino resolve não ser tão cruel e somente fazer pequenas peraltices com a vida alheia, lhe deixar em situações um tanto quanto constrangedoras. Ela não apenas causa desconforto em horas impróprias, como também lhe impossibilita os gestos mais arrebatadores. Ou vai me dizer que há arroubo que resista à vontade de mijar?
   Por isso, amigo, mesmo sem vontade, ou mesmo que a embriaguez já lhe tenha baratinado os sentidos, vá ao banheiro regularmente; para que, quando uma garota lhe olhar no fundo dos olhos e disser que quer lhe beijar, você não tenha que passar pelo vexame de responder: espera só um minutinho que eu vou ali fazer xixi e já volto.

sábado, 13 de novembro de 2010

É só isso mesmo.


“A arte imita a vida,
que imita a arte”.
O caralho!

Fezes cobertas por flores?
A paz reluzente no rosto de um defunto?

Na vida,
merda é merda!
E não há sorriso que disfarce
a opacidade dos olhos de um morto.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010


   “Fecha os olhos e levanta a cabeça”, ela dizia. Eu devia ter uns três ou quatro anos e minha mãe me ensinava a lavar o cabelo sem que o xampu escorresse para meus olhos. A água morna, o cheirinho de banho de criança e a voz tão aconchegante: “Fecha os olhos, filha!”.
   Ela mesma, segurando meu queixo, inclinava minha cabeça e alisava meu cabelo, tirando a espuma de minha testa. “Tá ardendo, mamãe, me dá a toalha!”, “Filha, eu não disse pra fechar o olhinho?! Toma, enxuga”. E ela beijava meus olhos como a curar todas as dores do mundo.
   Eram os banhos de uma vida. Cantávamos, ríamos e nos abraçávamos. Sorríamos mais do que ríamos. Essa simplicidade avassaladora que materializa o amor e o transforma em uma só cena, em memória, em intocável lembrança.
   No final, ela enxugava meus pés na toalha antes de eu pisar no tapete. Esquerdo e direito, esquerdo e direito: duas vezes; porque, distraída, eu os colocava de volta no chão molhado do boxe.
   Agora, não tenho e não preciso mais da ajuda de minha mãe para tomar banho. Porém, quando vou tirar o xampu, ainda sinto sua mão em meu queixo e, sorrindo, ouço sua voz sussurrando: “Fecha os olhos, filhinha”.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Em uma manhã de quinta-feira.


“I

Tudo o que é espontâneo é digno
por isso não alterei o verso acima
e nem alterarei sequer um ponto deste poema
Mas eis o que há de mais espontâneo
os pontos com que espaço estes versos
são aqueles com que espaçamos a vida.

Cada passo é uma vírgula
Um salto,
uma exclamação.
Pontuar é expor a alma da forma
mais cabível
Cabível não cabe nestes versos
Mas vide o verso 3

Acho que agora não sou sequer
                                 um travessão
Estou o espaço entre duas palavras
duas letras

Há um espaço entre as letras.

Ser é o estar pulsante
Agora, sou.
Sou de uma paz que agradeço por não ser
                                                               latente.

Acho que acabaram meus versos.


II

O absurdo de pensar que
enquanto atravesso este túnel
não penso em nada.


III

A beleza da vida ao acaso
vida improvisada
‘Vem comigo’

Já disse que toda espontaneidade é digna.

O espetáculo dos matizes dos gestos
renegando o protocolo,
o previsível,
o imprevisível articulado,
manipulado
Profanado.

Há um ridículo no jogo dos artifícios.


IV

Estou gastando minha poesia escrevendo
Vou guardá-la um pouco para viver.”

domingo, 17 de outubro de 2010


    
    Iria se atrasar. Olhou para o relógio e foi essa a certeza que lhe veio: nunca conseguiria chegar a tempo. Curiosa essa constatação tão absoluta, posto que sabia que seu relógio estava parado havia uns dois dias. Mesmo assim, correu para o quarto e escolheu no armário sua terceira melhor camisa social – por azar, a segunda estava lavando, e ir com a primeira tornaria óbvia demais sua ansiedade pelo encontro, pensou. Bobagem, já que ela não costumava sequer reparar se as pessoas estavam, de fato, vestidas ou não, e, mesmo que tais atributos lhe fossem válidos, não teria como saber em que ponto a camisa escolhida estava na escala das “melhores roupas” dele. De qualquer forma, achou mais digno – menos patético – resistir ao impulso de se arrumar exageradamente; já estaria seguro o suficiente com sua melhor cueca.
   Entrou no banheiro, ligou o chuveiro a gás e foi escovar os dentes e se barbear enquanto esperava a água esquentar. O banho não foi dos mais agradáveis: rápido e ainda meio frio; mas, quando acabou, compensou a negligência na esfregação do sabonete com desodorante e uns pingos de perfume.  Enxugou-se e saiu.
   A janela do quarto, que ocupava toda a extensão da parede oposta à porta do banheiro, não estava completamente fechada, e, pela pequena fresta, entrava um vento fraco, meio insistente, se esgueirando para junto dele. “A empregada deve ter esquecido aberta”, cogitou, “Pra que também uma janela tão grande?”, e apressou-se em fechá-la. Nunca gostara muito do vento.
   Precisava chegar às 20h ao restaurante combinado, e o relógio marcava – bem, que importância tem a hora que indica um relógio parado? Estava atrasado.
   Vestiu a cueca, a calça e os sapatos. Deteu-se um pouco antes de colocar a camisa, porém permaneceu firme em sua decisão. Deixou o quarto e foi até a porta do apartamento, onde parou. “Não adianta”, pensou enquanto seus dedos pressionavam e soltavam a maçaneta, “já é tarde”. “Dormir é o melhor que tenho a fazer”. Afastou-se então da porta, voltou para o quarto e deitou do jeito que estava. “Quem sabe com a segunda melhor camisa não teria dado tempo?”, disse olhando para certificar-se de que, dessa vez, a janela estava devidamente fechada.
   No restaurante, ela ocupava uma mesa na varanda com dois lugares. O garçom lhe trouxe o cardápio e lhe perguntou se desejava algo. “Por enquanto, só uma água, por favor. Sem gelo”, respondeu, e o garçom se retirou para buscar o pedido. Ela olhou para o seu relógio de pulso: 19h50min. “Ele deve estar chegando”, pensou sorrindo.