sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Em uma manhã de quinta-feira.


“I

Tudo o que é espontâneo é digno
por isso não alterei o verso acima
e nem alterarei sequer um ponto deste poema
Mas eis o que há de mais espontâneo
os pontos com que espaço estes versos
são aqueles com que espaçamos a vida.

Cada passo é uma vírgula
Um salto,
uma exclamação.
Pontuar é expor a alma da forma
mais cabível
Cabível não cabe nestes versos
Mas vide o verso 3

Acho que agora não sou sequer
                                 um travessão
Estou o espaço entre duas palavras
duas letras

Há um espaço entre as letras.

Ser é o estar pulsante
Agora, sou.
Sou de uma paz que agradeço por não ser
                                                               latente.

Acho que acabaram meus versos.


II

O absurdo de pensar que
enquanto atravesso este túnel
não penso em nada.


III

A beleza da vida ao acaso
vida improvisada
‘Vem comigo’

Já disse que toda espontaneidade é digna.

O espetáculo dos matizes dos gestos
renegando o protocolo,
o previsível,
o imprevisível articulado,
manipulado
Profanado.

Há um ridículo no jogo dos artifícios.


IV

Estou gastando minha poesia escrevendo
Vou guardá-la um pouco para viver.”

domingo, 17 de outubro de 2010


    
    Iria se atrasar. Olhou para o relógio e foi essa a certeza que lhe veio: nunca conseguiria chegar a tempo. Curiosa essa constatação tão absoluta, posto que sabia que seu relógio estava parado havia uns dois dias. Mesmo assim, correu para o quarto e escolheu no armário sua terceira melhor camisa social – por azar, a segunda estava lavando, e ir com a primeira tornaria óbvia demais sua ansiedade pelo encontro, pensou. Bobagem, já que ela não costumava sequer reparar se as pessoas estavam, de fato, vestidas ou não, e, mesmo que tais atributos lhe fossem válidos, não teria como saber em que ponto a camisa escolhida estava na escala das “melhores roupas” dele. De qualquer forma, achou mais digno – menos patético – resistir ao impulso de se arrumar exageradamente; já estaria seguro o suficiente com sua melhor cueca.
   Entrou no banheiro, ligou o chuveiro a gás e foi escovar os dentes e se barbear enquanto esperava a água esquentar. O banho não foi dos mais agradáveis: rápido e ainda meio frio; mas, quando acabou, compensou a negligência na esfregação do sabonete com desodorante e uns pingos de perfume.  Enxugou-se e saiu.
   A janela do quarto, que ocupava toda a extensão da parede oposta à porta do banheiro, não estava completamente fechada, e, pela pequena fresta, entrava um vento fraco, meio insistente, se esgueirando para junto dele. “A empregada deve ter esquecido aberta”, cogitou, “Pra que também uma janela tão grande?”, e apressou-se em fechá-la. Nunca gostara muito do vento.
   Precisava chegar às 20h ao restaurante combinado, e o relógio marcava – bem, que importância tem a hora que indica um relógio parado? Estava atrasado.
   Vestiu a cueca, a calça e os sapatos. Deteu-se um pouco antes de colocar a camisa, porém permaneceu firme em sua decisão. Deixou o quarto e foi até a porta do apartamento, onde parou. “Não adianta”, pensou enquanto seus dedos pressionavam e soltavam a maçaneta, “já é tarde”. “Dormir é o melhor que tenho a fazer”. Afastou-se então da porta, voltou para o quarto e deitou do jeito que estava. “Quem sabe com a segunda melhor camisa não teria dado tempo?”, disse olhando para certificar-se de que, dessa vez, a janela estava devidamente fechada.
   No restaurante, ela ocupava uma mesa na varanda com dois lugares. O garçom lhe trouxe o cardápio e lhe perguntou se desejava algo. “Por enquanto, só uma água, por favor. Sem gelo”, respondeu, e o garçom se retirou para buscar o pedido. Ela olhou para o seu relógio de pulso: 19h50min. “Ele deve estar chegando”, pensou sorrindo.